
"O Mundo é Minha Paróquia" (John Wesley)
OS SINAIS QUE DISTINGUEM VERDADEIRAS EMOÇÕES ESPIRITUAIS - Parte 1
09/07/2012 18:171. Comentários iniciais
Indicarei agora algumas coisas que distinguem emoções espirituais verdadeiras de outros tipos de emoção. Primeiro, entretanto, quero dar a seguinte orientação:
(i) Não vou ajudar ninguém a diferenciar infalivelmente entre emoções espirituais verdadeiras e falsas nos outros. Já condenei essas tentativas como arrogantes. Quanto a julgar outros, Cristo só nos deu regras o suficiente para nossa segurança, para evitar que sejamos desviados. Ele também nos deu muitas regras nas Escrituras que líderes da Igreja acharão úteis no aconselhamento de membros da Igreja sobre seu estado espiritual. Entretanto, Deus não nos capacitou a fazer uma separação infalível entre os cordeiros e os bodes em meio aos cristãos professos. Ele reteve esse poder somente para Si.
(ii) Não vou ajudar os cristãos que se tornaram frios a obter certeza de sua salvação. Já argumentei que não é parte do plano de Deus que tais cristãos tenham segurança. Deus não deseja que se tornem seguros de sua salvação, exceto ao saírem de sua condição espiritual fria. Ganhamos segurança, não tanto pelo auto-exame, como pela ação. O apóstolo Pedro nos diz que nos asseguremos de nosso chamado e eleição, primeiramente não pelo auto-exame, mas adicionando à fé excelência moral, conhecimento, auto-controle, perseverança, piedade, bondade fraterna e amor. (II Ped. 1:5-7). Os cristãos espiritualmente frios, então, deveriam seguir as instruções de Pedro e não esperar ajuda para conhecer sua salvação enquanto continuam na condição de frieza.
(iii) Ninguém deve esperar encontrar regras que condenem hipócritas enganados por revelações e emoções falsas, que se fixaram numa falsa segurança. Tais hipócritas estão tão seguros de sua própria sabedoria e tão cegos pela auto-confiança sutil, disfarçada em humildade, que parecem muitas vezes além do arrependimento. Entretanto, essas regras serão úteis para condenar outros tipos de hipócritas, bem como cristãos verdadeiros que confundiram falsas emoções com as verdadeiras.
2. Emoções espirituais surgem de influências espirituais, sobrenaturais e divinas no coração
O Novo Testamento chama os cristãos de pessoas espirituais, contrapondo-os às pessoas meramente naturais. "Ora, o homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, porque lhe são loucura; e não pode entendê-las porque elas se discernem espiritualmente. Porém o homem espiritual julga todas as coisas, mas ele mesmo não é julgado por ninguém" (I Cor. 2:14-15). Faz também contraposição entre pessoas espirituais e carnais: "Eu, porém, irmãos, não vos pude falar como a espirituais; e, sim, como a carnais, como a crianças em Cristo", isto é, aqueles que eram em grande parte não santificados. (I Cor. 3:1). Os vocábulos "natural" e "carnal" nesses versículos significam não santificados, sem o Espírito; "espiritual", então, significa santificado pelo Espírito Santo.
Assim como as Escrituras chamam os cristãos de espirituais, encontramo-las também descrevendo certas qualidades e princípios do mesmo modo. Lemos sobre um "pendor espiritual" (Rom. 8:6-7), "compreensão espiritual" (Col 1:9), e "bênçãos espirituais" (Ef. 1:3).
O termo "espiritual" em todos esses versículos não se refere ao espírito do homem. Uma qualidade não é espiritual somente por existir no espírito do homem, e não no seu corpo. As Escrituras chamam a algumas qualidades "carnais" ou da carne, mesmo que existam no espírito do homem. Por exemplo, Paulo descreve o orgulho, auto-confiança e confiança na própria sabedoria como carnais (Col. 2:18), embora essas qualidades existam no espírito do homem.
O Novo Testamento usa o termo "espiritual" para se referir ao Espírito Santo, a terceira Pessoa da Trindade. Cristãos são espirituais por terem nascido do Espírito de Deus e porque o Espírito vive neles. Coisas são espirituais por sua relação com o Espírito Santo - "Disto também falamos, não em palavras ensinadas pela sabedoria humana, mas ensinadas pelo Espírito, conferindo coisas espirituais como espirituais. Ora o homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus." (I Cor. 2:13-14).
Deus dá Seu Espírito aos verdadeiros cristãos para viver neles e influenciar seus corações como uma fonte de vida e ação. Paulo diz que os cristãos vivem porque Cristo vive neles (Gal. 2:20). Cristo, por Seu Espírito, não só está neles, mas vive neles; vivem por Sua vida. Os cristãos não só bebem da água da vida, porém essa água da vida se torna uma fonte em suas almas, jorram em vida espiritual eterna. (Jo. 4:14). A seiva da verdadeira vinha não flui dentro deles como num cálice, mas em galhos vivos, onde a seiva se torna uma fonte de vida (Jo. 15:5). Assim, as Escrituras chamam os cristãos de "espirituais" porque Deus une Seu Espírito a eles desse modo.
O Espírito de Deus pode influenciar os homens naturais, e efetivamente o faz; veja Num. 24:2; I Sam. 10:10; Heb. 6:4-6. Nesses casos, entretanto, Deus não dá do Seu Espírito como uma fonte de vida espiritual. Não há união entre o Espírito de Deus e o homem natural. Posso ilustrar isso da seguinte forma: a luz pode brilhar num objeto muito escuro e negro, todavia se não fizer com que o próprio objeto dê luz, ninguém vai chamá-lo de objeto brilhante. Assim, quando o Espírito de Deus opera somente sobre a alma, sem se transformar em vida nela, aquela alma não tem se tornado espiritual.
A principal razão para que as Escrituras chamem os cristãos e suas virtudes de "espirituais" é a seguinte: o Espírito Santo produz nos cristãos resultados que se harmonizam com a verdadeira natureza do próprio Espírito.
Santidade é a natureza do Espírito de Deus, portanto, as Escrituras chamam-nO de Espírito Santo. Santidade é a beleza e doçura da natureza divina e a essência do Espírito Santo, assim como o calor é a natureza do fogo. Este Espírito Santo vive nos corações dos cristãos como uma fonte de vida, agindo neles e dando de Si mesmo a eles em Sua doce e divina natureza de santidade. Ele leva a alma a partilhar da beleza espiritual de Deus e da alegria de Cristo, de modo que os crentes associem-se com o Pai e com o Filho, pela participação no Espírito Santo. Assim, a vida espiritual nos corações dos crentes é igual em natureza à própria santidade de Deus, embora em grau infinitamente menor. E como o sol brilhando num diamante. O brilho do diamante é igual em natureza ao brilho do sol, mas em grau menor. E isso que Cristo quer dizer, em Jo. 3:6: "o que é nascido do Espírito, é espírito." A nova natureza criada pelo Espírito Santo é da mesma natureza do Espírito que a criou; assim, as Escrituras chamam-na de natureza espiritual.
O Espírito opera dessa forma somente nos verdadeiros cristãos. Judas descreve os homens de mente mundana como os "que não têm o Espírito" (Jud. 19). Paulo diz que somente os verdadeiros cristãos têm o Espírito Santo neles; e "se alguém não tem o Espírito de Cristo, esse tal não é dEle" (Rom. 8:9). Ter o Espírito Santo é sinal certo de estar em Cristo, de acordo com João: "Nisto conhecemos que estamos nele, e ele em nós, pois que nos deu do seu Espírito" (I Jo. 4:13). Em contraste, um homem natural não tem experiência de coisas espirituais; falar delas é tolice para ele, pois não sabe o que significa. "Ora, o homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, porque lhe são loucura; e não pode entendê-las porque elas se discernem espiritualmente" (I Cor. 2:14). Jesus mesmo ensinou que o mundo incrédulo não conhece o Espírito Santo: "o Espírito da verdade, que o mundo não pode receber, porque não o vê, nem o conhece" (Jo. 14:17).
E claro, portanto, que os efeitos produzidos pelo Espírito Santo nos verdadeiros cristãos são diferentes de qualquer coisa que o homem possa produzir pelo poderes humanos naturais. É isso que eu quiz dizer ao afirmar que as emoções espirituais verdadeiras surgem de influências sobrenaturais.
Disso se segue que os cristãos têm uma nova percepção ou concepção interna em suas mentes, totalmente diferente em natureza de qualquer outra coisa que tenham experimentado antes de serem convertidos. É, por assim dizer, um novo sentido espiritual para coisas espirituais. Esse sentido é diferente de qualquer sentido natural, assim como o sentido do paladar é diferente dos sentidos de visão, audição, olfato, e tato. Por esse novo sentido espiritual, o cristão compreende as coisas de modo diferente da percepção possível ao homem natural; é como a diferença entre simplesmente olhar para o mel e de fato experimentar sua doçura. É por isso que as Escrituras muitas vezes comparam a obra da regeneração pelo Espírito à aquisição de um novo sentido - visão para o cego, audição paia o surdo. Sendo esse sentido espiritual mais nobre e excelente do que qualquer outro, as Escrituras comparam sua concessão ao ressuscitar dos mortos e a uma nova criação.
Muitas pessoas confundem esse novo sentido espiritual com a imaginação, porém é bem diferente da imaginação. Imaginação é uma habilidade comum a todos; permite que tenhamos idéias de paisagens, sons, aromas e outras coisas quando estas não estão presentes. Ainda assim, as pessoas confundem imaginação com o sentido espiritual do seguinte modo: algumas pessoas têm idéias duma luz brilhante imprimida em suas imaginações. Elas chamam a isso de revelação espiritual da glória de Deus; outras têm idéias vigorosas de Cristo pendurado e sangrando na cruz; chamam a isso de visão espiritual de Cristo crucificado; alguns vêem Cristo sorrindo para eles, com Seus braços abertos para abraçá-los; chamam a isso de revelação da graça e do amor de Cristo; alguns têm idéias vívidas do céu, de Cristo ali em Seu trono e brilhantes hostes de anjos e santos; chamam a isso de visão do céu aberto para eles; outros têm idéias de sons e vozes, talvez citando as Escrituras para eles; chamam a isso de ouvir a voz de Cristo em seus corações, ou ter o testemunho do Espírito Santo.
Estas experiências, entretanto, não têm nelas nenhuma coisa de espiritual ou divina. São simplesmente idéias imaginárias ou coisas externas - uma luz, um homem, uma cruz, um trono, uma voz. Essas idéias imaginárias não são espirituais em sua natureza; um homem natural pode ter idéias vivas de formas e cores e sons. A idéia imaginária dum brilho externo e da glória de Deus não é melhor do que a idéia que milhões de incrédulos condenados receberão da glória externa de Cristo no dia do Juízo Final. Uma imagem mental de Cristo pendurado numa cruz não é melhor que aquilo que os judeus não espirituais tiveram, quando ficaram em volta da cruz e viram a Jesus com seus olhos físicos. Pensem sobre isso. Acaso o quadro de Jesus na imaginação seria melhor que a idéia que os católicos romanos conseguem ter de Cristo com suas pinturas e estátuas idólatras dEle? E seriam as emoções inspiradas por essas idéias imaginárias melhores que aquelas que os católicos ignorantes sentem quando adoram essas pinturas e estátuas?
Essas idéias imaginárias estão tão longe de ter natureza espiritual que satanás pode facilmente produzi-las. Se ele pode sugerir pensamentos aos homens, pode também sugerir imagens. Sabemos pelo Velho Testamento que falsos profetas tinham sonhos e visões vindo de falsos espíritos. Vejam Deut. 13:1-3; I Reis 22:21-23; Is. 28:7;Ez. 13:l-9;Zac. 13:2-4.E, se satanás pode imprimir essas idéias imaginárias na mente, então as mesmas não podem ser evidência da obra de Deus.
Ainda que Deus produzisse essas idéias na mente de alguém, isso não provaria coisa alguma sobre a salvação dessa pessoa. Isso está claro nas Escrituras pelo exemplo de Balaão. Deus imprimiu na mente de Balaão uma imagem clara e viva de Jesus Cristo como uma estrela surgindo de Jacó e o cetro surgindo de Israel. Balaão descreve essa experiência da seguinte forma: "palavra daquele que ouve os ditos de Deus, e sabe a ciência do Altíssimo; daquele que tem a visão do Todo--poderoso, e prostra-se, porém de olhos abertos; vê-lo-ei, mas não agora; comtemplá-lo-ei, mas não de perto; uma estrela precederá de Jacó, de Israel subirá um cetro" (Num. 24:16-17). Balaão viu a Cristo numa visão, porém não tinha conhecimento espiritual dEle. Não era salvo, apesar da imagem do Salvador impressa por Deus em sua mente.
Emoções surgindo de idéias na imaginação não são espirituais. Emoções espirituais podem produzir essas idéias, especialmente em pessoas de mente enfraquecida, mas idéias na imaginação não podem produzir emoções espirituais. Emoções espirituais só podem surgir de causas espirituais - do Espírito Santo dando-nos compreensão da verdade espiritual. Entretanto, a idéia mental duma visão ou uma voz não é de natureza espiritual, algo que pode ser experimentado tanto por crentes como por incrédulos, uma vez que a imaginação é uma habilidade natural partilhada por todos. Ainda assim, não é de surpreender que idéias religiosas imaginárias muitas vezes despertem emoções naturais em alto grau. O que mais poderíamos esperar, quando a pessoa que tem essas idéias crê que são revelações e sinais do favor de Deus? É claro que ela fica excitada!
Este é um bom lugar para dizer algo sobre o testemunho ao nosso espírito, pelo Espírito Santo, de que somos filhos de Deus (Rom. 8:16). Muitos não compreendem isso, pelo que tenho percebido. Pensam que o testemunho do Espírito é uma revelação imediata do fato de que são filhos adotados de Deus. É como se Deus falasse ao íntimo deles, por um tipo de voz ou impressão secreta, assegurando-lhes que Ele é seu Pai.
É a palavra "testemunho" que engana essas pessoas a ponto de pensarem assim. Quando as Escrituras dizem que Deus "testifica com o nosso espírito", elas supõem que deve significar que Deus assegura ou revela a verdade diretamente. Um olhar mais cuidadoso às Escrituras mostra que isso não é correto. Por "ser testemunha" ou "testificar", o Novo Testamento muitas vezes quer dizer apresentar evidência da qual algo pode ser provado como sendo verdade. Por exemplo, em Heb. 2:4 lemos: "dando Deus testemunho juntamente com eles, por sinais, prodígios e vários milagres, e por distribuição do Espírito Santo segundo a Sua vontade." Esses sinais, maravilhas, milagres e dons são chamados "testemunho de Deus", não por serem assertivas, mas por serem evidências e provas. De novo, temos I Jo. 5:8, quando João chama "a água e o sangue" de testemunha. A água e o sangue não afirmam coisa alguma, porém foram evidências. Mais uma vez, a obra da providência de Deus nas estações de chuva e frutos são "testemunho" da bondade de Deus, isto é, são evidências dessas coisas (At. 14:17).
Quando Paulo fala do Espírito Santo testificando com o nosso espírito que somos filhos de Deus, não quer dizer que o Espírito nos faz alguma sugestão ou revelação sobrenatural. Os versículos anteriores mostram o que Paulo quer dizer: "Pois todos os que são guiados pelo Espírito de Deus são filhos de Deus. Porque não recebestes o espírito da escravidão para viverdes outra vez atemorizados, mas recebestes o espírito de adoção, baseados no qual clamamos: Aba, Pai. O próprio Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus." (Rom. 8:14-16). Isso significa que o Espírito Santo nos dá evidência de que somos filhos de Deus, por habitar em nós, dirigindo-nos e inclinando-nos a um comportamento para com Deus, tal como filhos para com um pai.
Paulo fala de dois espíritos, o espírito de escravidão, que é o medo; e o espírito de adoção, que é o amor. O espírito de escravidão opera pelo medo; o escravo teme a punição, entretanto o amor clama "Aba, Pai!" e permite que um homem vá até Deus e se comporte como filho dEle. Nesse amor filial por Deus, o crente vê e sente a união de sua alma com Ele. A partir disso tem segurança de ser filho de Deus. Assim, o testemunho do Espírito Santo não se trata de um sussurro espiritual ou revelação imediata. É o efeito santo do Espírito de Deus nos corações dos crentes, levando-os a amar a Deus, odiar o pecado e buscar a santidade. Ou, como Paulo o coloca: "Porque, se viverdes segundo a carne, caminhais para a morte; mas, se pelo espírito mortificardes os feitos do corpo, certamente vivereis" (Rom. 8:13).
Quando Paulo diz que o Espírito Santo testifica com nosso espírito, não quer dizer que hajam duas testemunhas separadas e independentes. Quer dizer que recebemos pelo nosso espírito o testemunho do Espírito de Deus. Isto é, nosso espírito vê e declara a evidência de nossa adoção produzida pelo Espírito Santo em nós. Nosso espírito é a parte de nós que as Escrituras chamam, em outro lugar, de o coração (I Jo. 3: 19-21) e de a consciência (II Cor. 1:12).
Dano terrível tem resultado do pensamento que o testemunho do Espírito Santo seja um tipo de voz interna, sugestão, ou declaração de Deus para um homem que ele é amado, perdoado, eleito, etc. Quantas emoções vigorosas, porém falsas, resultaram dessa ilusão! Receio que multidões tenham ido para o inferno iludidas por elas. É por isso que tratei do assunto tão longamente.
3. O propósito de emoções espirituais é a beleza das coisas espirituais, não o nosso próprio interesse
Não pretendo excluir todo interesse pessoal das emoções espirituais, mas seu lugar é secundário. O objetivo fundamental das emoções espirituais é a excelência e beleza das coisas espirituais como são em si mesmas, não a relação que têm com o nosso interesse pessoal.
Alguns dizem que todo amor resulta do amor de si mesmo. É impossível, dizem, para qualquer pessoa amar a Deus sem que o amor por si mesmo esteja à raiz de tudo. De acordo com essas pessoas, quem quer que ame a Deus e deseje comunhão com Ele e deseje a Sua glória, deseja estas coisas somente a propósito de sua felicidade. Assim, um desejo pela própria felicidade (amor a si próprio) está na base do amor por Deus. Entretanto, aqueles que dizem isso deveriam perguntar-se porque uma pessoa colocaria sua felicidade em dependência da comunhão com Deus e Sua glória. Certamente isso é o efeito do amor a Deus. Uma pessoa tem de amar a Deus antes de perceber a comunhão com Ele e Sua glória como a sua própria felicidade.
E claro que existe um tipo de amor por outra pessoa que surge do amor por si mesmo. Isso ocorre quando a primeira coisa que atrai o nosso amor por alguém é algum favor que nos tenha demonstrado ou algum presente que nos deu. Nesse caso, o amor a si mesmo certamente está à raiz do amor ao outro. É completamente diferente quando a primeira coisa que atrai o nosso amor ao outro é nosso apreço por suas qualidades, que são lindas em si mesmas.
O amor a Deus que emana essencialmente do amor a si mesmo não pode ser de natureza espiritual. O amor próprio é um princípio puramente natural. Existe nos corações de demônios como nos de anjos. Assim, nada pode ser espiritual se for meramente resultado do amor a si mesmo. Cristo fala sobre isso em Luc. 6:32: "Se amais os que vos amam, qual é a vossa recompensa? Porque até os pecadores amam aos que os amam."
A causa mais profunda do verdadeiro amor a Deus é a suprema beleza da natureza divina. É a única coisa razoável a se acreditar. O que faz, principalmente, um homem ou qualquer criatura belo é sua excelência. Certamente a mesma coisa é verdadeira no que diz respeito a Deus. A natureza de Deus é infinitamente excelente; é beleza, fulgência e glória infinitas em si mesmas. Como podemos amar corretamente a excelência e beleza de Deus se não o fazemos por causa delas mesmas. Aqueles cujo amor a Deus é baseado na utilidade que Deus tem para eles mesmos, estão partindo do ponto errado. Estão vendo a Deus somente do ponto de vista do interesse próprio. Falham em apreciar a glória infinita da natureza de Deus, que é a fonte de toda a bondade e toda a beleza.
O amor natural a si mesmo pode produzir muitas emoções dirigidas a Deus e a Cristo, onde não há apreciação da beleza e glória da natureza divina. Por exemplo, amor por si mesmo pode produzir uma gratidão meramente natural a Deus. Isso pode ocorrer por idéias erradas sobre Deus, como se Ele fosse somente amor e misericórdia, sem justiça vingadora, ou como se Deus estivesse obrigado a amar uma pessoa pelos seus merecimentos. Desse ponto de vista, os homens podem amar a um deus criado por sua própria imaginação, quando não têm nenhum amor pelo Deus verdadeiro.
Mais uma vez, o amor próprio pode produzir um amor a Deus mediante a falta de convicção de pecado. Algumas pessoas não têm qualquer percepção da perversão do pecado, nem da infinita e santa aversão de Deus ao pecado. Pensam que Deus não tem padrões mais altos que os deles! Assim, dão-se bem com Ele, mas amam a um deus imaginário, não ao Deus verdadeiro. Existem também outros cujo amor a si mesmos produz um tipo de amor a Deus, simplesmente pelas bênçãos materiais que recebem de Sua providência. Nisso também não há qualquer coisa espiritual!
Além disso, outros sentem um amor vigoroso por Deus, por crerem fortemente que Ele os ama. Depois de passarem por grande desespero e medo do inferno, podem subitamente começar a crer que Deus os ama, perdoou seus pecados e os adotou como Seus filhos. Isso pode ocorrer por uma impressão em suas imaginações, ou uma voz falando de dentro deles, ou de alguma outra forma não bíblica. Se você perguntar a essas pessoas se Deus é amável e excelente em Si mesmo, podem perfeitamente dizer que sim. Entretanto, a verdade é que sua boa opinião sobre Deus foi obtida pela grande benção que imaginam ter recebido dEle. Permitem que Deus seja amável nEle mesmo, somente porque Ele os perdoou e os aceitou, ama-os tanto e prometeu levá-Los ao céu. É fácil amar a Deus e dizer que Ele é amável quando acreditam nisso. Qualquer coisa é amável para uma pessoa interesseira quando promove o seu próprio interesse.
O verdadeiro amor espiritual por Deus surge nos cristãos de uni modo completamente diferente. Cristãos verdadeiros não vêem primeiro que Deus os ama e depois descobrem que Ele é amável. Vêem primeiro que Deus é amável, que Cristo é excelente e glorioso. Seus corações são primeiramente cativados por essa visão de Deus e seu amor por Ele surge principalmente dessa percepção. O verdadeiro amor se inicia com Deus, amando-0 por aquilo que Ele é. Amor por si mesmo começa com a pessoa e ama a Deus por interesse em si mesmo.
Entretanto, não gostaria que pensassem que toda a gratidão a Deus por Suas bênçãos seja meramente natural e egoísta. Existe gratidão espiritual. A verdadeira gratidão espiritual se diferencia da gratidão meramente interesseira dos seguintes modos:
(i) A verdadeira gratidão a Deus por Suas bênçãos flui de um amor a Deus como Ele é em Si mesmo. O cristão já viu a glória de Deus, e ela cativou o seu coração. Assim, o seu coração se torna sensível e é facilmente tocado quando este Deus glorioso lhe dirige favores e bênçãos. Posso ilustrar isso a partir da vida humana. Se um homem não tem amor por outra pessoa, pode ainda assim sentir gratidão por algum ato de bondade feito a ele por aquela pessoa; ainda assim, isto é diferente da gratidão de um homem a um amigo amado, por quem seu coração já tem uma grande afeição. Quando nossos amigos nos ajudam, o amor que já sentimos por eles aumenta. Do mesmo modo, um amor a Deus por Sua beleza e glória rios inclina a ainda maior amor quando este grande Deus derrama bênçãos sobre nós. Assim, não podemos excluir todo amor a si mesmo da gratidão espiritual. "Amo o Senhor, porque ele ouve a minha voz e as minhas súplicas" (Sal. 116:1). No entanto, nosso amor pelo que Deus 6, prepara o caminho para nossa gratidão pelo que Ele faz.
(ii) Em gratidão espiritual, a bondade de Deus toca o coração das pessoas não só porque os abençoa, mas porque a bondade 6 parte da glória e beleza de Sua própria natureza. A incomparável graça de Deus revelada na obra da redenção e resplandecendo na face de Cristo, é infinitamente gloriosa em si mesma. O cristão vê essa glória e se delicia nela. Seu interesse na obra de Cristo, como um pecador necessitando de salvação, ajuda a focalizar sua mente nela. A visão da bondade de Deus agindo por sua redenção faz com que preste ainda mais atenção à natureza gloriosa da bondade de Deus. Por isso, o amor próprio se torna o servo da contemplação espiritual.
Alguns podem fazer objeções a tudo o que eu disse, citando do I Jo. 4:19: "Nós o amamos porque Ele nos amou primeiro." Eles pensam que isto significa que nosso conhecimento do amor de Deus por nós é o que primeiramente faz com que amemos a Ele. Discordo. Penso que João quer dizer algo bem diferente. Quer dizer que o nosso amor a Deus é algo que Ele coloca em nossos corações, como sinal de Seu amor por nós. Nós O amamos, porque Ele graciosamente inclina os nossos corações a amá-10; Ele faz isso devido a Seu amor gratuito e soberano por nós; pelo que, Ele nos escolheu eternamente para nos tornar os que O amam. Nesse sentido, nós O amamos porque Ele primeiro nos amou. E o que equivale a dizer: "Somos salvos porque Ele nos amou quando não tínhamos amor por Ele."
Admito que existem outros modos em que amamos a Deus porque Ele primeiro nos amou, todavia isso tem que se referir a um amor espiritual por Deus, não a um amor meramente egoísta. Por exemplo, o amor de Deus em Jesus Cristo pelos pecadores é uma das revelações mais importantes das Suas gloriosas perfeições morais. Assim, o amor de Deus por nós produz um amor pela perfeição moral de Deus. De novo, o amor de Deus por uma pessoa eleita em particular, revelado na conversão daquela pessoa, é uma grande demonstração da glória de Deus para ela; por isso produz santa gratidão espiritual, como foi explicado acima. Desses vários modos amamos a Deus com amor santo e espiritual, pois Ele primeiro nos amou. Por que não deveríamos presumir que esse é o tipo de amor a Deus sobre o qual trata I Jo. 4:19, em vez de um simples amor egoísta?
Até aqui discuti o amor de um cristão por Deus. O que eu disse se aplica igualmente à alegria e prazer em Deus. Prazer espiritual em Deus surge principalmente de Sua beleza e perfeição, não das bênçãos que nos são dadas por Ele. Mesmo o caminho da salvação por Cristo é prazeroso principalmente por Sua exibição gloriosa das perfeições de Deus. E claro, o cristão se regozija por Cristo ser seu Salvador pessoal. Contudo, esta não é a causa mais profunda de sua alegria.
Quão diferente é com os falsos cristãos! Quando ouvem do amor de Deus ao enviar Seu Filho, o amor de Cristo em morrer pelos pecadores e as grandes bênçãos que Cristo comprou para Seu povo, e prometeu a ele, podem escutar com grande prazer e se sentir grandemente jubilosos. Todavia, se examinarmos essa alegria, descobrimos que eles estão se regozijando porque essas bênçãos são suas, tudo isso os alegra. Podem até se deliciar na doutrina da eleição, pois lisonjeia seu amor próprio pensar que são os favoritos do céu! Sua alegria é realmente em si mesmos, não em Deus.
Por conseguinte, em todas as alegrias dos falsos cristãos, seus olhos estão em si mesmos. Suas mentes estão ocupadas com suas próprias experiências, não com a glória de Deus ou a beleza de Cristo. Ficam pensando, "Como isso é uma boa experiência! Que enormes revelações estou recebendo! Que boa história posso contar para os outros agora!" Desse modo, põem suas experiências no lugar de Cristo. Em vez de se regozijarem na beleza e plenitude de Cristo, regozijam-se em suas maravilhosas experiências; e isso se mostra em sua conversa. São grandes conversadores sobre si mesmos. O verdadeiro cristão, quando se sente espiritualmente aquecido e fervoroso, gosta de falar de Deus, de Cristo e das verdades gloriosas do evangelho. Falsos cristãos são repletos de conversa sobre si mesmos, as maravilhosas experiências que eles tiveram, como estão seguros que Deus os ama, como suas almas estão seguras, como sabem que eles irão para o céu, etc.
4. Emoções espirituais são baseadas na excelência moral das coisas divinas
O que quero dizer por excelência moral das coisas divinas? Não estou me referindo àquilo que muitos entendem por "moralidade". Muitos usam essa palavra se referindo meramente ao cumprimento exterior dos deveres. Outros a usam para se referir às virtudes não espiritualmente motivadas que um incrédulo pode ter - honestidade, justiça, generosidade, etc. Quando falo de excelência moral, o que quero dizer é o tipo de excelência que pertence ao caráter moral de Deus. Noutras palavras, estou falando sobre a santidade de Deus. A santidade de Deus é a soma total de Suas perfeições morais - Sua retidão, verdade e bondade. (Deus tem outros atributos, tais como poder, conhecimento e eternidade, mas não os chamamos morais, pois não são qualidades do caráter de Deus.)
Já mostrei que emoções espirituais surgem da beleza das coisas espirituais. Estou agora seguindo um passo adiante e afirmando que esta beleza é moral. O que um verdadeiro cristão ama nas coisas espirituais é a santidade. Ele ama a Deus pela beleza de Sua santidade.
Não quero dizer que os cristãos não vejam beleza no poder, no conhecimento e na eternidade de Deus. Entretanto, nós amamos essas coisas por causa da santidade de Deus. Poder e conhecimento não fazem um ser amorável sem santidade. Quem veria beleza num homem perverso somente por ter poder e conhecimento? É santidade que torna essas outras qualidades formosas. A sabedoria de Deus é gloriosa por ser uma sabedoria santa, e não uma astúcia perversa. A eternidade de Deus é gloriosa por ser uma eternidade santa, e não um mal imutável.
Assim, amor a Deus deve começar pelo enlevo em Sua santidade, e não por Seus outros atributos. É da santidade de Deus que o restante de Seu ser deriva Sua beleza. Não veremos nenhuma beleza no conhecimento, poder, eternidade ou outros atributos de Deus a não ser que primeiro vejamos o puro encanto de Sua santidade.
Do mesmo modo que a santidade é a beleza da natureza de Deus, é também a beleza de todas as coisas espirituais. A beleza do cristianismo é por ser uma religião tão santa. A beleza da Bíblia é devido à santidade de seu ensinamento (Sal. 19:7-10). A beleza de nosso Senhor Jesus é por causa da santidade de Sua Pessoa - "o Santo" de Deus (At. 2:14). A beleza do evangelho é devido ser ele um evangelho santo, brilhando com a beleza de Deus e Jesus Cristo. A beleza do céu é a sua perfeição santa - "a santa cidade" (Apoc .21:10).
Eu disse antes que Deus dá aos cristãos um novo sentido espiritual. Agora posso dizer-lhes exatamente o que esse sentido espiritual vê, sente e saboreia. É a beleza da santidade. Os incrédulos não podem ver essa beleza, porém o Espírito Santo tornou os cristãos conscientes dela.
As Escrituras indicam a beleza da santidade como o verdadeiro objetivo do apetite espiritual. Esse era o doce alimento do Senhor Jesus Cristo. "Uma comida tenho para comer, que vós não conheceis. A minha comida consiste em fazer a vontade daquele que me enviou, e realizar a sua obra" (Jo. 4:32 e 34). Temos também no Salmo 119 uma das passagens mais claras nas Escrituras sobre a natureza da verdadeira religião. Ela celebra a lei de Deus, que revela Sua santidade. Declara por toda sua extensão que a excelência desta lei é o principal objetivo do paladar espiritual (Vejam versículos 14,72,103,127,131, 162). Encontramos a mesma idéia no Salmo 19, onde o salmista declara que as santas leis de Deus "são mais desejáveis do que ouro, mais do que muito ouro depurado; e são mais doces do que o mel e o destilar dos favos" (v.10).
Uma pessoa espiritual ama as coisas santas pela mesma razão que a não espiritual as odeia - e o que uma pessoa não espiritual odeia nas coisas espirituais é precisamente sua santidade! Assim também, é a santidade das coisas santas que uma pessoa espiritual ama. Vemos isso nos santos e nos anjos nos céus. O que cativa suas mentes e corações é a glória e a beleza da santidade de Deus. "E clamavam uns para os outros, dizendo: santo, santo, santo é o Senhor dos Exércitos; toda a terra está cheia de sua glória" (Is. 6:3). "Não têm descanso nem de dia nem de noite, proclamando: santo, santo, santo é o Senhor Deus, o Todo-poderoso, aquele que era, que é e que há de vir" (Apoc. 4:8). "Quem não temerá e não glorificará o teu nome, ó Senhor?... pois só tu és santo" (Apoc. 15:4). E assim como é nos céus, assim também deveria ser na terra. "Exaltai ao Senhor nosso Deus, e prostrai-vos ante o escabelo de seus pés, porque ele é santo" (Sal. 99:5).
Podemos testar nossos desejos pelo céu por essa regra. Queremos estar lá pela santa beleza de Deus que ali brilha? Ou nosso desejo pelo céu é baseado numa simples ansiedade pela felicidade egoísta?
Continue no próximo dia...
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