"O Mundo é Minha Paróquia" (John Wesley)


AS EPÍSTOLAS DE PAULO

04/07/2012 13:59

I. O CARÁTER E A PERSONALIDADE DE PAULO

 

No dizer de um autor consagrado as epístolas paulinas "diferem das mensagens das simples folhas de papiro do Egito, não como cartas, mas simplesmente como cartas de Paulo". É, na realidade, espantosa a diferença, já que Paulo como amanuense e intérprete do Espírito Santo anunciava nas suas epístolas as verdades eternas. Essas epístolas fazem parte da Palavra de Deus, do Deus que vive e permanece para sempre. A missão de Paulo ia assim abrir um caminho à verdade de Cristo na consciência e no entendimento do mundo gentio.

 

Mas, enquanto se destinam à edificação dos crentes e só, raramente, revestem o caráter de tratados teológicos, (como no caso da epístola aos Romanos), as epístolas são escritas com toda a liberdade da correspondência epistolar, revelando, por isso, a personalidade do autor, que assim poderíamos resumir: Tato e presença de espírito; ternura e simpatia; retidão de consciência e integridade; ação de graças e oração; coragem e perseverança. Só pela leitura das epístolas não é difícil verificar que todas estas qualidades são apanágio do grande Apóstolo.

 

O fato mais chocante acerca do temperamento de Paulo, tal como no-lo descrevem as epístolas, é aquele misto de austeridade e de ternura que tanto o caracterizam. Vejamos a dureza com que por vezes se dirige aos gálatas e aos coríntios na segunda carta! Nesta última epístola revela-se também profundamente sensível perante a ingratidão e a apostasia de alguns convertidos menos satisfeitos; e de tal modo, que poderíamos afirmar que essa epístola deixava entrever a fina sensibilidade de Paulo e constitui uma agitada autodefesa dum coração ferido e amoroso perante a ingratidão e o erro de almas ainda não totalmente perdidas. Mesmo que por vezes não deixasse de ser áspero e desabrido para com os promotores de desordens e devassos dalgumas das suas Igrejas, podia ainda garantir que tratara carinhosamente os tessalonicenses, "como a ama que cria os seus filhos" (1Ts 2.7) e comportara-se com cada um deles "como o pai a seus filhos" (1Ts 2.11). Em suma, na alma do Apóstolo a lógica e o sentimento, a paixão e a severidade fundiam-se numa combinação de flexibilidade, que formavam uma ternura e um vigor sem par.

 

Paulo revela-se-nos nas epístolas como uma alma cristocêntrica. Para ele "o viver é Cristo" (Fp 1.21), e a vida "vivo-a na fé do Filho de Deus" (Gl 2.20). Como ele se eleva nas asas do entusiasmo ao apresentar-nos a glória soberana do Filho de Deus! A propósito da palavra "Senhor" que aparece mais de vinte vezes em 1Ts, uma das suas primeiras cartas, houve quem ousasse afirmar que "nunca a sonda do dogma descera tão fundo; nem subiram tão alto as asas da adoração". E agora, numa das últimas cartas, precisamente aos colossenses, descreve-nos o Cristo "que é a imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação" em Quem foram criadas todas as coisas e por Quem todas as coisas subsistem (cfr. Cl 1.15-17). Mas tal doutrina já se encontra implícita em cartas anteriores, bem como na revelação do Filho de Deus nele (Gl 1.16), quando "o Senhor da glória" (1Co 2.8) lhe falou da "excelente glória" que vem a ser a Sua morada eterna.

 

Há ainda outro contraste a frisar na mentalidade e no pensamento de Paulo. É que ele era não só o maior dos teólogos cristãos, mas também o mais profundo dos moralistas do Cristianismo. Em estreita relação com a doutrina teológica pululam as exortações a uma vida santa, a demonstrar que o Apóstolo não era um teórico, nem um sonhador. Com os pés em terra firme, não deixa de ser consistente com a sã doutrina, que anda sempre aliada à santidade da vida. Por outro lado a moralidade será morta, se não mergulhar profundamente as raízes na terra firme da sã doutrina.

 

Era de fato extraordinária a mentalidade deste "gênio de amor", que tão humanamente se dedicava às almas. Pensemos nas muitas saudações aos seus amigos de Roma (Rm 16); não são meras formalidades, inexpressivas e frias, mas algumas delas reveladoras duma profunda ternura. Cultivando a simpatia pessoal, vemo-lo à procura de Tito, apesar de perder uma oportunidade de pregar o Evangelho em Trôade: "Não tive descanso no meu espírito, porque não achei ali meu irmão Tito" (2Co 2.13). Na sua última carta, ouvimo-lo lamentar-se amargamente "porque" -dizia ele-"os que estão na Ásia todos se afastaram de mim" (2Tm 1.15) e até Demas acabou por desampará-lo (2Tm 4.10). Comovedor o seu último apelo: "Procura vir ter comigo depressa... Procura vir antes do inverno"! (2Tm 4.9,21). Finalmente lembrem-se as lágrimas deste coração sensível (At 20.19,31; 2Co 2.4; Fp 3.18), lágrimas viris, que só se derramam nos grandes momentos duma vida!

 

II. A COLEÇÃO DAS EPÍSTOLAS

 

Impossível saber-se ao certo quando foram coligidas as epístolas paulinas. Nos meados do século II, Justino mártir dá-nos a entender, que, no "dia do sol", se liam à hora do culto os Evangelhos, juntamente com as Escrituras do Velho Testamento. Mas, muito antes de terem sido publicados os Evangelhos, já eram lidas as epístolas de Paulo pelo menos nas igrejas, a quem se dirigiam. Quanto à união dessas cartas dispersas é muito possível que tenhamos de admitir uma data muito recuada.

 

Se admitirmos que Simão Pedro é o autor da 2Pe, como grandes eruditos, Bigg, Zahn e Warfield, afirmam, então é fácil concluir que cerca do ano 67 já se encontravam reunidas as epístolas de Paulo, segundo 2Pe 3.16 nos sugere. Ignora-se, todavia, o número de cartas que faziam parte dessa coleção.

 

No ano de 140, aproximadamente, o herege Marcião preparou e organizou um Cânon do Novo Testamento, que continha as epístolas de Paulo, com exceção das Pastorais. Tal Cânon, porém, era muito limitado pois apenas continha um Evangelho, o de Lucas, e mesmo esse muito truncado. Marcião não pode ser considerado como um porta-voz da opinião da Igreja Ortodoxa do seu tempo, mas seu Cânon parece provar que na primeira metade do século II os próprios hereges tinham por autênticas as epístolas de Paulo, e estas já se encontravam reunidas num volume.

 

O Cânon Muratoriano, datado de cerca do ano 180, faz menção duma coleção de epístolas paulinas em número de treze, já nesse tempo conhecidas da Igreja de Roma e até doutras Igrejas.

 

III. O ESTILO LITERÁRIO DE PAULO

 

Se é verdade que "o estilo é o homem" então podemos considerar o estilo literário de Paulo como a expressão franca e espontânea de seu temperamento. Pois a verdade é que ele manifesta a intensidade de sua mente. Há aquilo que pode ser descrito como uma espécie de tempestuosidade em seus escritos: por vezes e vezes seguidas ele corre célere de um ponto a outro, impulsionado por alguma poderosa onda de pensamento e sentimento. A notável descrição do dr. G. G. Findlay pode ser citada. Com clamores interrompidos e declarações pausadas, ainda que impetuosas, ele nos deixa esbaforidos por meio de seus longos períodos, enquanto vai até o cume de algum exaltado pensamento, enquanto que a linguagem a todo momento ameaça partir-se sob o peso que é compelida a carregar; até que, finalmente ele chega a seu magnificente clímax, e o caminho confuso, pelo qual forçou passagem, jaz sob nossos pés".

 

Algumas vezes, quando Paulo força passagem por algum "caminho confuso", ele presta bem pouca atenção às regras e leis da gramática. A construção de suas sentenças algumas vezes é complicada, e a conexão exata entre uma idéia e outra pode ser ocasionalmente incerta. Isso se deve à pressa tempestuosa com que seus pensamentos avassalam sua mente, mas os próprios pensamentos brilham com um esplendor que nunca pode desmaiar, apesar de todas as complexidades e as não infreqüentes obscuridades de seu estilo. Tais obscuridades geralmente requerem, para ser elucidadas, a mais aguda habilidade exegética, bem como às vezes o mais profundo discernimento espiritual sobre a própria visão de Paulo a respeito das realidades eternas. Se perseverarmos em nosso estudo sobre Paulo, logo descobriremos que estamos assentados aos pés de alguém que, mais que qualquer outro ser humano, penetrou longe nas maravilhas e glórias daquele "segredo aberto de Deus" que é "Cristo em vós, a esperança da glória" (Cl 2.2; Cl 1.27).

 

IV. A DOUTRINA DE PAULO COMPARADA COM A DE CRISTO

 

Quanto à questão da relação de Paulo para com Jesus, pontos de vista mais sãos prevalecem atualmente do que aqueles que em determinado período obcecaram as mentes de certos estudantes do Novo Testamento. O estudo cuidadoso de todos os fatos relevantes tem demonstrado, conclusivamente, que a idéia de que Paulo tenha sido corruptor da mensagem original de Jesus é uma ilusão completa. Ninguém acredita seriamente, agora, que Paulo tenha criado do nada uma nova teologia. A mente original e originadora, na era do Novo Testamento, é atualmente percebido, com mais ou menos clareza, foi a do próprio Senhor. Paulo foi um fiel intérprete do que está mais profundamente envolvido na vida e ensino de Jesus.

 

No momento de sua conversão, Paulo se tornou imediatamente, e para sempre, um homem cuja vontade era dominada pela vontade de Cristo. Cristo o conquistou, afirma ele em uma de suas referências incidentais à sua conversão (Fp 3.12); e se isso significou, como já dissemos, que daí e para sempre Paulo era homem centralizado em Cristo, também significa que ele sempre procurava ser um homem dominado por Cristo. A primeira pergunta por ele feita, para Quem tão subitamente raiou em sua vida com um novo poder criativo, foi "Quem és tu, Senhor?"; e a segunda, foi "Que farei, Senhor?" Essa atitude de absoluta submissão a Cristo era a atitude de sua mente, de princípio a fim, pelo que, a idéia dele haver inventado dogmas relativos ao seu divino Senhor e Mestre teria sido uma abominação para ele. Paulo não tinha o menor desejo de desenvolver e promulgar uma teologia sua própria, mas tão somente de pregar as "insondáveis riquezas de Cristo" (Ef 3.8), conforme o Espírito da verdade o capacitasse a fazer. Em todos os instantes podia fazer aquela declaração com boa consciência: "não nos pregamos a nós mesmos, mas a Cristo Jesus como Senhor" (2Co 4.5).

 

Por meio de ilustração, podemos espiar no ensino de Paulo sobre dois temas-a deidade de Jesus, e a morte de Jesus como expiação pelo pecado.

 

Jesus reivindicava uma relação sem igual para com Deus (Mt 11.27 etc.). A linguagem mais exaltada de Paulo, sobre a pessoa de Jesus, como em Fp 2.5-11 e Cl 1.15-19, é apenas um desdobramento do que está altamente subentendido nas declarações de nosso Senhor sobre Si mesmo. As epístolas de Filipenses e Colossenses contam-se entre as últimas cartas de Paulo, mas numa carta mais anterior (#1Co 8.6) temos, latente, a grandiosa doutrina de Cl 1.15-19. Ambas as passagens estabelecem a doutrina da dupla Soberania de Cristo, que baseia Sua soberania redentiva sobre Sua soberania criativa, sendo que a passagem em Corinto afirma essa verdade de modo mais simples, enquanto que a passagem em Colossenses a afirma de modo mais completo. Realmente, a verdade da deidade de Jesus ficou indelével na mente de Paulo desde o momento de sua conversão. Foi da "glória excelente" que Jesus lhe falou, e desde aquele momento Paulo compreendeu que a luz do conhecimento da glória de Deus resplandecia na face de Cristo (2Co 4.6). Escreve o dr. D. M. McIntyre, em seu livro Christ the Lord: "Enquanto a experiência do apóstolo ia aumentando, seus conceitos se estenderam até uma terra de largas distâncias. Enquanto ele meditava sobre o Deus-homem e entrava numa comunhão cada vez mais íntima com Ele, novas glórias, adornando Aquele que é inteiramente amável, foram sendo percebidas". E o ponto é que essas glórias não foram sonhadas ou inventadas pela engenhosa mente de Paulo, mas são glórias que por direito pertencem a Cristo, glórias que justificam cada uma de Suas estupendas reivindicações, que, segundo os evangelhos sinópticos tão claramente de acordo com o quarto evangelho, Jesus fez a respeito de Si mesmo.

 

Algumas vezes ainda ouvimos dizer que Paulo foi o único originador da doutrina de que a morte de Jesus foi uma expiação pelo pecado. Mas, novamente, a posição mais sã é aquela que afirma que Paulo é um fiel expositor do ensino de Jesus. O germe de tudo quanto Paulo escreveu concernente a morte de Jesus, em sua relação para com o pecado, pode ser encontrado nas duas notáveis declarações do Senhor referente à significação de sua morte, a saber, Suas palavras sobre o "resgate por muitos" (Mt 20.28; Mc 10.45) e Suas palavras sobre a nova aliança que foi estabelecida em Seu sangue, e que contém, como sua bênção fundamental, o perdão dos pecados (Mt 26.28; Mc 14.24). Diz Denney, em seu livro The Death of Christ; no tocante à declaração sobre o resgate: "Se encontrarmos o mesmo pensamento em Paulo, não deveríamos dizer que o evangelista paulinizou seu escrito, mas antes, que Paulo se assentou aos pés de Jesus".

—————

Voltar